Por Paulo Eduardo Moruzzi Marques, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, e Fábio Frattini Marchetti, pesquisador do Núcleo de Apoio à Cultura e Extensão Universitária em Educação e Conservação Ambiental da USP
Aaprovação
da Década da Agricultura Familiar, entre 2019 e 2028, pela 72ª Sessão da
Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas é bastante reveladora de
perspectivas existentes para alavancar ações visando ao alcance dos Objetivos
do Desenvolvimento Sustentável (ODS). A iniciativa da ONU foi fundamentada na
concepção segundo a qual a agricultura familiar constitui um pilar muito sólido
para a luta contra a fome e a pobreza; para a garantia de segurança alimentar e
nutricional; para a proteção dos recursos naturais e, assim, para a promoção do
desenvolvimento sustentável.
Esta orientação da ONU em favor da
agricultura familiar se coaduna com interesses investigativos do Grupo de
Pesquisa em Agriculturas Emergentes e Alternativas (Agremal), vinculado ao
Programa de Pós-Graduação em Ecologia Aplicada Interunidades (Esalq-Cena/USP).
O grupo estuda particularmente o reconhecimento, as práticas, as estratégias e
os valores de atividades agrícolas que se afastam do produtivismo
agroalimentar. Assim, a apresentação das linhas centrais das abordagens deste
nosso grupo de pesquisa nos parece pertinente para contribuir com a reflexão e
debate sobre o lugar da agricultura familiar para o cumprimento dos Objetivos
do Desenvolvimento Sustentável.
Nas pesquisas realizadas pelos membros
do Agremal, é frequentemente mobilizada a noção de multifuncionalidade da
agricultura familiar (MFA), que nasce justamente no campo de debate sobre o
desenvolvimento sustentável. Suas primeiras menções ocorrem na Conferência
Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em
1992. Mas a ideia de conceber funções da agricultura precede este momento. Nos
anos 1970, o olhar sobre o papel da agricultura no Brasil se limitava a
considerá-la como suporte ao desenvolvimento industrial. Nesta ótica, a
agricultura deveria cumprir as funções de liberar trabalhadores no campo para
que ocupassem postos de trabalho no mundo urbano-industrial em crescimento; de
fornecer alimentos em abundância e baratos para que as famílias urbanas pudessem
reduzir as despesas alimentares e destinar maior parte do orçamento familiar
para aquisição de bens industriais de consumo; de ampliar o emprego de
equipamentos e insumos industriais e, enfim, de transferir capital para o
investimento no setor industrial.
Com o debate sobre as múltiplas funções
da agricultura, a visão sobre os papéis da atividade agrícola se desloca para
outras dimensões. Com este olhar, a agricultura contribui para a proteção
ambiental, para a coesão social, para a oferta de alimentos saudáveis, para a
incitação de um desenvolvimento territorial equilibrado, para a preservação de
tradições agroalimentares, para a promoção da saúde, para a dinamização de
economias locais, entre outras ideias formuladas em campo de debate bastante
vigoroso e criativo.
Paralelamente, o grupo de pesquisa
explora a teoria das justificações para a análise de estratégias e práticas da
agricultura familiar, com interesse em aprofundar estudos sobre dinâmicas
sociais que permitam reconhecimento, ou não, das múltiplas funções da
agricultura. Em poucas palavras, a teoria das justificações parte do
pressuposto de que existem diversas concepções de justiça com graus distintos
de legitimidade no tempo e no espaço. Assim, oferece um repertório de
referências de justiça que podem ser mobilizadas por diferentes atores visando
ao alcance de legitimidade para suas causas. No debate agroalimentar,
predominam justificativas fundadas em princípios de justiça industrial e
mercantil, mas crescem argumentos ancorados em perspectivas ligadas, sobretudo,
às ordens justas cívica, doméstica e ecológica.
Com efeito, se uma perspectiva de
justiça industrial e mercantil constituiu a base da argumentação em favor da
modernização da agricultura, oferecendo legitimidade, por exemplo, para concepções
segundo as quais uma agricultura adequada para a sociedade contemporânea
deveria cumprir funções subordinadas ao desenvolvimento industrial, como
mencionado acima, o debate sobre a sustentabilidade e multifuncionalidade da
agricultura permite considerar a emergência de princípios alternativos de
justiça neste âmbito, particularmente aqueles ecológicos. Em grande medida, são
estes últimos que sustentam os argumentos em favor da agricultura familiar nos
dias de hoje, tornando-se cada vez mais importantes na reflexão sobre os meios
para a atividade agrícola responder aos desafios do desenvolvimento
sustentável.
A propósito, a evolução de significados
associados à noção de segurança alimentar ilustra bem este tipo de mudança. Na
década de 1990, ambiguidades em torno dessa noção, que podia ser mobilizada
tanto para a defesa de uma perspectiva produtivista-industrial quanto para
sustentação de uma ótica multifuncional favorável à agricultura familiar,
levaram a Via Campesina, organização internacional de representação de
agricultores familiares, a levantar a bandeira da “soberania alimentar”.
Tratou-se de defender medidas inequívocas com vistas ao fortalecimento da
agricultura familiar camponesa (em razão de suas múltiplas funções) para
alcançar objetivos tanto de abastecimento alimentar como de combate à pobreza e
à fome. No Brasil, desde a reinstalação do Conselho Nacional de Segurança
Alimentar (Consea), em 2003, é bastante evidente a predominância de uma
perspectiva de segurança alimentar com ênfase em soberania. Tal ótica é
explicitada, por exemplo, na Lei nº 11.346/2006 (LOSAN), na qual, em seu artigo
quinto, é prescrito que “a consecução do direito humano à alimentação adequada
e da segurança alimentar e nutricional requer o respeito à soberania, que confere
aos países a primazia de suas decisões sobre a produção e o consumo de
alimentos”.
Entre as diversas ações concebidas no
âmbito do Consea, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) constitui um
modelo representativo de segurança com soberania alimentar. Trata-se de uma
forma de diversificação do apoio público à agricultura familiar, combinando sua
sustentação com o socorro alimentar de famílias em situação de vulnerabilidade
social. O PAA apresenta uma série de inovações robustas em termos de dispositivos
de políticas públicas no âmbito agroalimentar. Sua regulamentação simplificou a
aquisição, por meio de chamadas públicas, de alimentos provenientes da
agricultura familiar, o que contorna uma barreira importante para que
agricultores organizados em associações e cooperativas possam acessar os
mercados institucionais. Ademais, suas normas estabelecem que os produtos
agroecológicos ou orgânicos podem ter um acréscimo de até 30% (trinta por
cento) em relação aos preços dos alimentos convencionais, o que representa
outra orientação favorável ao cumprimento de múltiplas funções da atividade
agrícola.
Este programa constitui um meio
extraordinário para responder aos problemas de insegurança alimentar, agravados
com o advento da pandemia de covid-19. Porém, assistimos nos últimos anos ao
desmonte do PAA e do conjunto dos dispositivos de políticas públicas
direcionadas à agricultura familiar. A propósito, a extinção do Consea nos
primeiros atos do atual governo federal é reveladora deste desengajamento estatal,
com o fechamento das portas para a participação social na concepção e gestão
das políticas públicas de segurança alimentar. Tais medidas representam em
última análise escolhas em direção contrária àquelas desejadas para o alcance
dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.
Neste quadro, os pesquisadores do Agremal estão comprometidos com a organização de um livro a partir da compilação de diferentes resultados de pesquisas que evidenciam as múltiplas funções da agricultura familiar, podendo contribuir assim com a reflexão e debate com vistas ao alcance dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Com vocação de fomentar o debate em torno da Década da Agricultura Familiar, a referida publicação está prevista para ser lançada no primeiro semestre de 2022, abordando temas relevantes no campo agroalimentar, tais como: o agravamento da fome no Brasil; padrões sustentáveis de produção e consumo; soberania e segurança alimentar; políticas públicas; manejo e conservação da agrobiodiversidade; agricultura urbana e mercados alimentares alternativos.
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