Brasil sabe combater a fome, mas seremos um dos países mais famintos de novo. Como virar o jogo?
Para
estudiosos, o Brasil já amarga índices negativos para retornar ao próximo Mapa
da Fome da ONU, lista da qual o país havia saído em 2014. Os primeiros culpados
pelo retorno foram o orçamento menor para programas de combate à fome, a crise
política, econômica e o desemprego. Então, veio a covid-19.
Com
a pandemia, famílias que nunca passaram fome receberam cestas básicas pela
primeira vez. Em muitos casos, o primeiro parente havia recém-formado na
faculdade, mas agora não consegue emprego. Famílias inteiras foram demitidas,
partiram para o trabalho sem registro ou perderam dinheiro como autônomos.
Outras tantas perderam gente pela covid-19 ou precisaram dar um jeito de
alimentar o filho, agora sem a merenda dada na escola.
“A extrema pobreza aumentou, não precisamos de um relatório para
perceber que certamente voltamos para o mapa da fome”
Ana Claudia, do Instituto Fome Zero.
A
instituição Ação da Cidadania retomou a campanha de combate à fome anual em
fevereiro após dez anos. Desde março de 2020, o presidente da instituição
Daniel Souza foi alertado que a doação não poderia ser só no Natal. "As
pessoas não tinham falta de comida só para a ceia. Elas começaram a não ter o
que comer no dia seguinte", diz.
A fome não é só um prato vazio. Pode ser um prato menos cheio e a incerteza se irá comer em breve. Por isso, especialistas usam o conceito de "segurança alimentar". É uma escala sobre a certeza da próxima refeição e o cardápio. Em 2018, dez milhões de brasileiros estavam em níveis graves de insegurança alimentar segundo o IBGE. É quase a população da cidade de São Paulo. Outros 74 milhões têm o que comer, mas calculam bem e restringem a comida. Segundo estudo organizado pelo Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça, com sede na Universidade Livre de Berlim, 59,3% dos brasileiros não comeram em quantidade ideal desde o início da pandemia, ou seja, seriam mais de 125,6 milhões de pessoas em insegurança alimentar. O trabalho de quem tem tentado reverter esse quadro se torna ainda mais urgente.
Elizia
Costa, 39, era professora comunitária em São Luís, no Maranhão, e foi demitida
no início da pandemia. O marido é guardador de carros e também perdeu fonte de
renda. O filho caçula de 11 ficou sem aula. A mais velha, de 21, se formou em
serviço social e só recentemente conseguiu trabalhar como aprendiz. Os pais
ainda pagavam o financiamento da universidade da filha.
"Não
passamos fome, mas fomos privados de colocar comida em casa como antes",
diz. "Trocamos açúcar ou arroz melhores e mais caros pelos mais baratos.
Como seres pensantes, a gente refletiu, apertou o orçamento e colocamos a
redução na prática".
Quando
a situação apertou mais, a família de Elizia recebeu cestas básicas da
Associação Comunitária Itaqui Bacanga, ONG que atende a região empobrecida de
São Luís. "Antes da pandemia, a gente levava cesta básica para cerca de
20% dos moradores. Hoje, são 60%. Isso dá 82 mil pessoas", diz Ivan Jr.,
presidente da instituição.
Historicamente,
o Norte e Nordeste têm mais pessoas com insegurança alimentar e necessidade de
auxílio federal e dos governos locais. Mas em 2013 a situação havia melhorado:
mais de 60% das casas da região Norte tinham segurança alimentar. No Nordeste,
61% tinham a comida garantida no mesmo ano. O cenário mudou desde então.
De frente
para um prato, o auxiliar de limpeza Daniel Garcia, 39, tinha apenas um ovo
para cada pessoa da casa onde vive em São Luís. Não era o único problema no
início da pandemia, mas somava-se aos outros. A dependência química o perseguia
e há cinco anos estava desempregado.
Na
igreja evangélica que o acolheu, orou para vencer o vício, ter um emprego e
comida. O gerente do mercado onde guardava carros o contratou e ele assumiu a
vaga na limpeza para receber um salário-mínimo — e diz que está limpo. Os
filhos, com 20 anos, estão desempregados. "O mais humilde precisa ralar o
dobro para ter o que comer", diz.
Alimentar
mais de 200 milhões de pessoas exige coordenação entre investimento dos
governos, pesquisa, instituições da sociedade civil e solidariedade. E o Brasil
tem experiência no tema.
A
insegurança alimentar foi reduzida desde os anos 2000 por programas como Fome
Zero e Bolsa Família. Para receber dinheiro, a família precisa matricular os
filhos na escola. Assim, também entram no tradicional e um dos maiores meios de
combate à fome no mundo: a merenda escolar. Mais de 40 milhões de estudantes
comem nas escolas públicas nos 5.570 municípios brasileiros.
Há
também o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que compra itens da
agricultura familiar e doa para municípios, estados e entidades. Para que tudo
funcione, há um conselho com grupos diferentes da sociedade em Brasília chamado
Consea. Ou havia.
Desde 2013,
os programas de combate à fome foram diminuídos e com eles foram desfeitas
iniciativas para garantir segurança alimentar a todos os brasileiros, como num
castelo de cartas.
O
investimento federal PAA, que chegou a R$ 1,1 bilhão em 2012, foi reduzido para
R$ 232 milhões em 2018. A merenda, que no ápice dos últimos 20 anos recebeu R$
4,7 bilhões em 2010, foi reduzida a R$ 3,9 bilhões em 2019. O Consea (Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) foi extinto pelo presidente Jair
Bolsonaro (sem partido) nos primeiros dias de mandato e recriado por deputados
federais, mas sem a musculatura de antigamente. Na pandemia, nem todos os
municípios fizeram a transferência da merenda para a casa. Eis, então, a fome.
O
líder comunitário e presidente do G10 Favelas, Gilson Rodrigues, que atua em
Paraisópolis, segunda maior favela de São Paulo com estimados 100 mil
habitantes, criou uma horta comunitária e estimulou moradores a plantarem
comida na laje onde moram. "A gente até se constrange em pedir doação,
então conseguimos pelo menos abastecer cozinhas da comunidade", afirma.
Segundo
ele, o auxílio emergencial aliviou as contas dos mais pobres, mas o desemprego
ainda empurra famílias que tinham o que comer na fila da marmita. Há dias em
que se briga por uma marmita com arroz e salsicha.
A associação de moradores em Paraisópolis distribui de 500 a 800 marmitas por dia, mas depende de estoque. Até o ano passado, 10 mil marmitas eram oferecidas. Com o passar dos meses, as doações despencaram.
Numericamente,
o estado de São Paulo concentra o maior número de pessoas com insegurança
alimentar grave. Em portas de igrejas, embaixo dos viadutos, em casas de
alvenaria, nos restaurantes populares e nas associações há filas que dobram
quarteirões em busca de comida. "O novo normal da pandemia é um povo
anestesiado que assiste o pobre morrer de fome", diz Gilson.
Para
especialistas no assunto, o Brasil tem experiência e basta recriar programas
como o Fome Zero, investir mais e estimular a solidariedade. "É um começo
e seria uma vantagem o governo reconhecer que existe a fome", pontua
Juliana Tângari, do think tank Comida do Amanhã.
Enquanto
isso, a dona Maria, em Rio Branco, espera que as coisas melhorem, que a
pandemia acabe, a comida fique mais em conta e não falte. Como todo brasileiro,
não se considera triste. Se diz apenas "sem sabedoria" por não ter
estudado, mas esperta por ter aprendido a valorizar o pouco que tem com os
pais. Para se tranquilizar, ela costuma cantar um louvor da igreja evangélica
que garante que tudo vai dar certo: "Não pode parar. Deus é contigo (...)
Vai, vai. Canaã é logo ali".
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