Projeto de horta urbana muda vida de mulheres em uma das maiores favelas de São Paulo

Fazenda comunitária de Paraisópolis produz 63 variedades e alimenta projeto de gastronomia local. Moradoras recebem curso para iniciar plantio em casa

Pedro Teixeira, com supervisão de Leandro Becker

 
Rosana Freire, manicure, e Renata Lima, assistente administrativa da AgroFavela Refazenda. Horta comunitária produziu até março mais de 500 quilos de alimentos (Foto: Arquivo pessoal/Rosana Freire)

Sob os parcos raios de sol que superam as águas de telhado das muitas casas vizinhas e iluminam a laje, crescem um pimentão, uma couve kale, cebolinhas, hortelãs, entre outros temperos. A casa pertence a Rosana Freire, manicure de 30 anos, e uma dos cerca de 120 mil moradores de Paraisópolis, a segunda maior favela de São Paulo.

Ainda em novembro de 2020, ela foi aluna da segunda turma da AgroFavela Refazenda, projeto de horta comunitária que não apenas fornece alimentos aos moradores na região, mas oferece cursos preparatórios para que as mulheres de Paraisópolis possam plantar em casa.

Assim como outras habitantes da favela com população de cidade média, Rosana saiu da aula com uma muda de sua escolha entre os braços. No caso dela, uma couve kale. A hortaliça plantada há sete meses está prestes a atingir o tamanho ideal para consumo.

A manicure contou à Globo Rural que sempre teve interesse em hortifruticultura, mas, com o tempo tomado pelo trabalho, nunca havia se dedicado de fato à prática até frequentar as primeiras rodas de conversa da Refazenda.

“O pessoal do projeto dá todo o suporte, além de ajudar com insumos e equipamentos. São coisas simples. Por exemplo, a Renata [Lima, assistente administrativa da AgroFavela] foi à minha casa me ajudar. Colocamos brita nos fundos dos vasos, e plantas que nunca tinham vingado começaram a ficar mais bonitas”, recorda Rosana, que planeja cultivar seu primeiro pé de morango nos próximos dias.

As educandas do projeto ainda recebem a oportunidade de participar das colheitas semanais do projeto. Desde novembro do ano passado, foram colhidas 3.486 hortaliças, como mostarda, alface, couve, espinafre, alecrim, orégano, louro, tomilho, menta e alho-poró, entre um total de 63 espécies e variedades de vegetais.


Adélia Maria de Oliveira e Ismael Walker, os dois jardineiros da AgroFavela Refazenda (Foto: Reprodução/Instagram/AgroFavela Refazenda)

A mão boa por trás de cada muda é da jardineira Adélia Maria de Oliveira. Enquanto ela faz as plantas brotarem ou prepara enxertos, divide a responsabilidade pela horta com o também morador da comunidade Ismael Walker, que fica com o trabalho pesado, empurrando a carriola e manejando a terra. O plantio é feito em uma área de 900 metros quadrados à beira da avenida Hebe Camargo, que delimita o início do território de Paraisópolis.

Atrás da tenda de jardinagem onde Adélia trabalha, estão situadas as estruturas verticais dedicadas à hidroponia (meio para cultivar vegetais sem o uso do solo com auxílio de irrigação). “Graças a deus ainda não teve uma cultura que tenha dado errado aqui. Cresci na fazenda, em Vitória da Conquista (BA). Comecei a plantar ainda menina”, afirma.

O orgulho não é injustificado. Fora as folhagens e temperos distribuídos entre as treliças e os boxes, estão plantadas na horta pés de morango, pimenta, quiabeiros, maxixeiros, dentre outras outras árvores frutíferas, além de tubérculos como batatas-doces. “Nada leva agrotóxico. Tudo é orgânico”, diz a responsável, que combate as pragas com uma solução de ervas aromáticas cultivadas na própria AgroFavela.

Esse sem-fim de cores, odores e sabores deslumbra as alunas do curso, que são apresentadas a alimentos aos quais não tinham acesso antes do projeto, segundo Adélia. “A gente ensina a elas como aproveitar cada uma das hortaliças na cozinha e fala dos benefícios do consumo”, conta ela, uma das orientadoras.

Outra faceta da fazenda urbana é abastecer a cozinha solidária do Mãos de Maria, projeto voltado ao empoderamento de mulheres por meio da gastronomia, que passou a distribuir 10,9 mil quentinhas por dia na comunidade desde março de 2020, quando o novo coronavírus passou a assolar o país.

Adélia começou, inclusive, a cuidar de plantas em Paraisópolis muito antes da inauguração da AgroFavela Refazenda, há pouco mais de sete meses. Ela cultiva temperos, frutas e folhosas no terraço do Bistrô Mães de Maria faz três anos, no âmbito do Horta na Laje, o primeiro passo do G10 Favelas (bloco de líderes e empreendedores de impacto de comunidades brasileiras) para levar o conceito de agricultura comunitária para Paraisópolis.

Quem financia a empreitada desde os seus primórdios é o movimento contra a fome e a má nutrição Stop Hunger. O superintendente do Instituto Stop Hunger Brasil, Davi Barreto, ressalta a importância da AgroFavela na conjuntura em que o Brasil retornou ao Mapa da Fome, do qual saiu após luta de décadas em 2014. “É uma iniciativa de alto impacto, pois dá uma chance à população local sem a dependência de uma ação do governo”, diz.

Barreto defende que o foco da iniciativa nas mulheres, além de pretender empoderá-las, visa conferir mais eficiência ao empreendimento social. No Brasil, o crescente número de mulheres chefes de família atingiu 45% em 2018 ante 25% em 1995. Dentre as pessoas que receberam auxílio emergencial em 2020, 55% eram mulheres.

Mais um ponto forte do projeto, na visão do superintendente, é a reprodutibilidade. Embora tenha um planejamento minucioso de duas paisagistas voluntárias, os processos da horta são fáceis de serem repetidos em casa.

As estruturas verticais e os boxes são feitos com materiais simples, muitas vezes reaproveitados. De mais complexo, há o sistema de hidroponia. “Planejamos começar a distribuir uma versão compacta dele para as moradoras ainda nos próximos meses”, adianta.

Ele ainda salienta o êxito do projeto em levar o modelo de fazenda urbana, “tão comum em grandes cidades, como Paris”, à periferia.


O presidente do G10 Favelas, Gilson Rodrigues, em meio aos pés de alface plantados em estrutura hidropônica (Foto: Reprodução/Instagram/AgroFavela Refazenda)

A fazenda urbana que já colheu mais de 500 kgs de alimentos em seus primeiros cinco meses é fruto de um antigo sonho, diz Gilson Rodrigues, atual presidente e idealizador do G10 Favelas. Quem vê a horta banhada pelo sol da tarde não imagina que o espaço era o estacionamento do pavilhão social da entidade há cerca de um ano.

Como na música de Gilberto Gil, o G10 Favelas refez tudo dando origem à Refazenda. “Durante o processo de pandemia, nós começamos a pensar em alternativas para que as nossas ações pudessem ser sustentáveis. E, nas doações que recebemos, normalmente, não chega tempero ou hortaliça. Geralmente, é arroz, feijão ou produtos mais industrializados. Começamos a plantar as coisas que a gente sentia falta”, detalha Rodrigues.

Embora esse pontapé inicial pareça singelo, abastecer um projeto com as dimensões do Mãos de Maria trata-se de um feito. Tanto é que o Horta na Laje, de menor escopo, foi reconhecido em 2019 com o Prêmio GEEIS-SDG (Padrão Internacional de Equidade de Gênero Europeu - Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, em tradução livre), na sede da ONU em Nova York.

A Associação das Mulheres de Paraisópolis estima ter impactado 1.607 pessoas diretamente e 8.035 de forma indireta, desde o início da AgroFavela Refazenda.

Mas o objetivo final das iniciativas é gerar trabalho e renda na cozinha e na horta para as mulheres de Paraisópolis. “Tem aquela campanha Agro é pop, agro é vida, agro é tudo. A AgroFavela veio mostrar que a favela também pode ser agro. Produzir seus alimentos, combater a fome e a má nutrição”, defende Rodrigues.

"E como na favela todo o espaço é valioso, e as casas acabam tendo de crescer para cima. A solução que encontramos foi plantar nas lajes", ele acrescenta. E a iniciativa tem tido sucesso com o auxílio de técnicas de envazamento e agricultura vertical.

O presidente do G10 Favelas contou à Globo Rural que pretende expandir a operação da AgroFavela para todo o Brasil. “A próxima vai ser inaugurada em Betim, na Grande Belo Horizonte, no dia 23 de julho. E teremos outra no bairro Casa Amarela em Recife”, adianta. Em março, ele já havia inaugurado uma horta comunitária em Heliópolis, a maior favela de São Paulo.

Os planos de expansão também valem para a primeira sede da AgroFavela. “Estamos preparando a infraestrutura para começar a plantar nos dois terrenos ao lado”, afirma o líder comunitário e empreendedor. De acordo com ele, a horta vai ter sua área de 900 metros quadrados mais do que triplicada com os novos canteiros.

Os sonhos são de Gilson Rodrigues, mas quem faz os cálculos para torná-los realidade é a assistente social de 30 anos, Graziela Silva Soares, a gerente da AgroFavela.

Junto à presidente da Associação das Mulheres de Paraisópolis, Flávia Rodrigues, ela comanda a equipe de cinco pessoas que planta, ministra aulas, controla a entrada de insumos e materiais, além da saída de alimentos para o Projeto Mãos de Marias e para as alunas. Isso inclui a horta vertical de Heliópolis, a maior favela de São Paulo.

Embora nunca tivesse trabalhado com agricultura de forma profissional, os resultados do trabalho da administradora falam por si. “Desde que começamos o plantio, colhemos todos os meses”, diz ela, que começou a contribuir com o G10 Favelas de forma voluntária, como presidente de rua.

A ação se reflete na vida das mulheres de Paraisópolis. Além de Rosana Freire, citada no início da reportagem, basta acessar o Instagram da AgroFavela Refazenda para ver a horta de outras moradoras, felizes com o próprio sucesso enquanto fazendeiras urbanas.

https://revistagloborural.globo.com/Um-So-Planeta/noticia/2021/06/projeto-de-horta-urbana-muda-vida-de-mulheres-em-uma-das-maiores-favelas-de-sao-paulo.html





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