O impacto da epidemia nas feiras e iniciativas de comercialização direta




Por Potira Preiss (*)
A necessidade de afastamento social vivida em todo o país como forma de prevenção à Covid-19, tem afetado profundamente a dinâmica de abastecimento da população. Em algumas cidades, medidas governamentais orientam novas normas para funcionamento dos supermercados e mercados de bairro, sendo a criação de horários diferenciados para público vulnerável e reforço das práticas de higienização as diretrizes mais comuns. No entanto, no que diz respeito ao funcionamento das feiras, segundo lugar na predileção dos brasileiros para comprar alimentos, a criação de diretrizes padronizadas se tornam mais complexas e difíceis de serem generalizadas pela própria dinâmica de funcionamento destes canais de comercialização. Os desafios que a epidemia traz vão desde a assepsia das estruturas de exposição, higienização constante por parte dos comerciantes e consumidores, distanciamento entre bancas, formas de pagamento, sistemas de acondicionamento dos produtos, até a própria viabilidade de manutenção das feiras frente a necessidade de resguardo das interações sociais.
Muitas feiras são realizadas em espaços abertos, frequentemente públicos, como parques e praças em que uma estrutura de bancas e tendas é montada em um determinado dia/horário da semana. Assim, diferente dos espaços de comercialização fixos em que prateleiras, piso, caixas, equipamentos, precisam ser higienizados, nas feiras a montagem do espaço temporário já pode incluir uma limpeza das estruturas de exposição. No entanto, as condições de estrutura auxiliar do local que podem ser cruciais, como a água corrente, é um recurso normalmente inexistente em muitos casos. Em São Paulo (capital) o problema tem sido remediado com a instalação de pias móveis, fornecimento de álcool gel e papel toalha em cada banca. Ainda que nem todas as feiras da cidade tenham sido contempladas, a iniciativa conseguiu manter feiras ativas em quase todos os dias da semana em 10 bairros da cidade.
Em Porto Alegre, as organizações de agricultores agroecológicos em diálogo com órgãos governamentais elaboraram um Plano de Contingenciamento de Danos para nove Feiras Ecológicas que atuam na capital. Entre os cuidados a serem tomados está o distanciamento de no mínimo de 2m entre as bancas, criando uma área de circulação mais ampla para a clientela. Para cumprir com essa medida, a Fae – Feira dos Agricultores Ecologistas atuante desde 1989 no Bairro Bom Fim em Porto Alegre, teve que ir além da calçada e “invadir” a rua José Bonifácio. As feiras ecológicas da capital gaúcha também afrouxaram as diretrizes de evitar o uso de sacolas plásticas durante a feira para facilitar o acondicionamento. O tradicional manuseio dos produtos para verificar a condição dos alimentos, teve que ser substituída por uma análise visual. Considerando que a maioria das feiras funciona apenas com dinheiro vivo, o uso de luvas pelos feirantes tem sido uma alternativa bastante utilizada para resguardar as contaminações.
Em Sergipe, além dos cuidados já mencionados, algumas prefeitura também resolveram restringir o tipo de alimento comercializado, limitando a itens in natura e considerados de primeira necessidade. Na cidade do Rio de Janeiro, as medidas propostas pela prefeitura sugerem a realização intercalada das feiras, funcionando uma semana sim e outra não conforme o bairro. Uma medida que só será eficaz se for associada às outras precauções já descritas.
No entanto, em muitos casos, feiras que são realizadas sem o apoio direto das prefeituras, possuem estruturas mais informais ou acontecem em espaços como escolas, Universidades e shoppings, a suspensão das atividades têm sido inevitável. Nesses casos, uma estratégia interessante que está sendo mobilizada em diferentes partes do país é a realização de um sistema de encomendas e entregas, sejam estas em pontos de retirada ou direto na casa dos consumidores, assemelhando-se às estratégias de comercialização utilizados pelos Grupos de Consumo Organizado e Cestas domiciliares.
Essas formas de comercialização têm tido um crescimento exponencial nos anos recentes e buscam, de maneira geral, gerar uma maior renda aos agricultores aliada a praticidade para os consumidores. Pesquisas na área demonstram que essas iniciativas funcionam majoritariamente com agricultores familiares que produzem alimentos agroecológicos ou pelos menos, sem o uso de agroquímicos, e de procedência local. Ou seja, tem uma pegada ecológica menor e contribuem diretamente para a economia da região. A inexistência de intermediários permite que o recurso pago vá em sua totalidade para os agricultores, algo extremamente relevante se considerarmos que boa parte destes pertencem ao grupo de risco da Covid-19 e normalmente se encontram em condição de maior marginalização frente às políticas públicas. A dinâmica de compra direta também permite que os consumidores paguem preços mais econômicos em relação aos supermercados, contribuindo para a acessibilidade de produtos de qualidade e rompendo com o mito de que alimentos limpos são sempre mais caros.
Com a disseminação do vírus Corona no país, muitas dessas iniciativas têm tido uma sobrecarga em seus pedidos, o que traz o potencial de aumento do público consumidor mesmo após o período de quarentena. Segundo informações da Urgency – Rede Internacional articula grupos de consumo organizado, esse fenômeno também aconteceu na China, país epicentro da epidemia. O uso dessas estratégias por agricultores que normalmente comercializam sua produção apenas nas feiras traz, por um lado, desafios de adaptação rápida a nova dinâmica: criar sistemas de encomendas com o uso das tecnologias da comunicação (redes sociais e whatsapp) pensar o acondicionamento dos produtos e viabilizar transporte das entregas. Por outro lado, pode ser o experimento de uma nova forma de comercialização e criação de parcerias inusitadas. Um exemplo, são agricultores da região metropolitana de Porto Alegre que estão articulando a entrega das encomendas via motoristas de aplicativo.
Vai demorar algum tempo para podermos trazer análises mais conclusivas do impacto da epidemia no sistema de abastecimento e como isso pode afetar (positiva e negativamente) agricultores familiares e consumidores. No entanto, é válido considerar que a crise, a despeito de todo o sofrimento que pode trazer, também carrega um potencial de nos auxiliar a refletir sobre o sistema alimentar e nossas escolhas, abrindo espaço para soluções mais inteligentes. Essas formas de comercialização direta – feiras, grupos de consumo organizado e cestas domiciliares, tem um papel fundamental para a sociedade, nem sempre tendo o devido reconhecimento. É renda digna para quem está no campo e alimento saudável para o povo da cidade.
(*) Potira V. Preiss (potira@unisc.br), pesquisadora Pós- Doc no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional – PPGDR/UNISC e integrante do Grupo de Estudos em Agricultura, Alimentação e Desenvolvimento – GEPAD/UFRGS
(Foto: Guilherme Santos/Sul21)

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