Porque “alimento não é a pílula do Flash Gordon”, é preciso envolver outras pessoas no debate sobre a alimentação, a começar pelos consumidores. Os chefs de cozinha já estão convidados.
11 de Fevereiro de 2018, 8:56
O que os chefs sentem muitas vezes, disse Hugoi Brigo, é que “falta massa crítica” VERA MOUTINHO
“É preciso fazer uma discriminação positiva aos que sofrem uma discriminação negativa.” Durante os três dias da sua visita a Portugal, José Graziano da Silva, director-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) não perdeu uma oportunidade para fazer passar a sua mensagem: é preciso ajudar os agricultores familiares, é preciso alterar a maneira como nos alimentamos. “Flash Gordon tinha uma pílula que o alimentava quando ele viajava. Mas alimento não é a pílula de Flash Gordon.”
Na quarta-feira de manhã, na Reitoria da Universidade de Lisboa, no seminário AlimentAção, dedicado ao “direito humano a uma alimentação adequada através de compras públicas e de cadeias curtas agro-alimentares”, falou da sua experiência enquanto ministro extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome no Governo de Lula da Silva, e homem por trás do programa Fome Zero no Brasil. E deixou algumas pistas.
Uma das políticas fundamentais é a das compras públicas, através das quais o Governo passa a abastecer as cantinas escolares, dos hospitais e outras instituições públicas com alimentos comprados aos agricultores familiares e de proximidade. “Cria-se renda que circula no município e que leva a um circuito virtuoso de desenvolvimento local.”
Contou também como, a certa altura, quis perceber como se elaborava a informação nutricional que vem nas embalagens e descobriu algo que o surpreendeu: “A análise nutricional do nosso feijão era feita a partir de um feijão do México. Então, fiz um contrato com uma universidade para analisar todos os produtos do Brasil porque o conteúdo calórico e nutricional varia de região para região.” É muito importante que exista uma “política da dieta saudável”, sublinhou. “Há refrigerantes em que 40% da composição é açúcar e que eram distribuídos na merenda escolar.”
“Juntar a fome com a vontade de comer”
Para que as políticas funcionem, o debate tem de ser alargado (no Brasil são muitos os grupos da sociedade civil que fazem parte). Por isso, na sua agenda muito apertada, José Graziano da Silva ainda encontrou tempo para, segunda-feira à noite, participar num jantar — uma “tertúlia conspirativa”, como lhe chamaram os organizadores, o festival Sangue na Guelra (que em 2017 lançou o Manifesto para o Futuro da Cozinha Portuguesa), a Actuar e a Plataforma de Camponeses da CPLP — no restaurante Prado, em Lisboa, onde estiveram também agricultores e chefs de cozinha, que aproveitaram para trocar ideias. O tema, provocatório, era “juntar a fome com a vontade de comer”.
Francisco Sarmento, responsável pelo gabinete de FAO em Portugal, deixou uma sugestão: que os chefs se sentem à mesa que o Ministério da Agricultura está a organizar com representantes de outros ministérios e da sociedade civil VERA MOUTINHO
Cada um pôde falar dos problemas com que se debate para pôr em prática esta visão da agricultura e da alimentação que é a mesma que a FAO defende. Alfredo Cunhal Sendim, da Herdade do Freixo do Meio, em Montemor, lembrou a Maria Papoila. “A Maria Papoila é um fenómeno que celebra o abandono determinado deste tipo de agricultura. Nós saímos da província a cantar ‘não mais voltarei à minha terra, não mais voltarei àquela miséria’. Havendo muitos elementos de miséria naquela realidade, a forma como fazíamos agricultura era, no entanto, muito mais assertiva naquele tempo do que a que veio a impor-se depois.”
O que o agricultor lamenta é que, com “a subjugação da agricultura à indústria”, tenhamos passado de uma “atitude com 200 mil anos de cooperação, de entendimento com a natureza, para um domínio, passámos de maestros da natureza para carrascos da natureza”. Segundo Cunhal Sendim, foi esta mudança de modelo que levou a que hoje “dois terços do nosso país esteja abandonado, a criar cargas combustíveis — e ele arde, e vai arder, não tem outra hipótese enquanto não mudarmos isso”. Com o abandono da agro-ecologia, concluiu, deixámos de ter “um jardim à beira-mar plantado” para ter “um pinhal meio ardido à beira-mar plantado”.
Os cozinheiros e chefs de cozinha têm um papel importante aqui porque podem comprar aos produtores de proximidade, podem valorizar alimentos que eram desvalorizados (por exemplo, a bolota que Cunhal Sendim começou a recuperar no Freixo do Meio, dando-lhe diferentes utilizações).
O problema, explicou Henrique Sá Pessoa, chef do restaurante lisboeta Alma, é a falta de redes de contacto. Como é que se estabelecem essas redes, em que o chef sabe onde procurar o produtor que tem o que ele precisa e o produtor sabe como fazer chegar os seus produtos aos restaurantes? “Muitas vezes encontramos mais facilmente um produto em Espanha ou em Itália do que em Portugal porque essa plataforma não existe.”
Alexandre Silva, do Loco, também em Lisboa, sublinhou a importância da educação nas escolas e a preocupação com o que as crianças comem. “Quando vivemos num país em que os nutricionistas me dizem que devo comer fiambre de peru, que é um alimento processado, alguma coisa está mal. Eu sei como se fabrica fiambre, seja de peru, frango, porco, fumado ou não, em fornos a lenha como eles dizem, mas a maior parte das pessoas não sabe.” Quanto ao papel dos restaurantes, frisou a importância de se ser coerente e não se dizer que se tem um restaurante tradicional que faz cozinha portuguesa e depois “fazer carne de porco à alentejana em que a carne vem de Espanha e as amêijoas são vietnamitas”.
Hugo Brigo, do restaurante Boi Cavalo, levantou outro problema: “Não estão aqui os consumidores, não resolve nada estarmos a falar para um conjunto de pessoas já predispostas a ouvir o que temos a dizer.” O que os chefs sentem muitas vezes, disse, é que “falta massa crítica”. E deixou perguntas: “Como é que se passa a ideia de que o que temos, em termos de produção agrícola, paisagem agrícola e cultura gastronómica, é estimável e vale um pequeno aumento de preço? Como é que se volta a seduzir o público para ideias de sazonalidade, dizendo que é melhor comer bons morangos em menos ocasiões quando nos habituámos a ter tudo, todo o ano a toda a hora? E como se faz isso sem parecer que moralmente estamos num plano superior, sem hostilizar este público? Porque o que nós vemos é que ninguém quer que lhe digam como deve viver ou fazer as coisas.”
Precisamente porque as perguntas são muitas, os pontos de vista diferentes e os desencontros frequentes, Francisco Sarmento, responsável pelo gabinete de FAO em Portugal, deixou uma sugestão: que os chefs se sentem à mesa que o Ministério da Agricultura está a organizar com representantes de outros ministérios e da sociedade civil (através da organização Realimentar — Rede Portuguesa pela Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) e se juntem ao debate que está agora a começar.
https://www.publico.pt/2018/02/11/mundo/noticia/o-que-e-que-os-cozinheiros-tem-a-ver-com-isto-1802587
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