“O desenvolvimento rural e territorial cede novamente lugar ao desenvolvimento agrícola orientado exclusivamente pela produtividade agropecuária”. (Foto: Pedro Ventura/ Agência Brasília). Por Cátia Grisa
O Brasil está passando por um amplo conjunto de mudanças político e institucionais no âmbito das políticas públicas de desenvolvimento rural no período recente. Desde o ano passado, cartas políticas, manifestos e moções de movimentos sociais e sindicais da agricultura familiar, de organizações não governamentais e de redes e grupos acadêmicos vinculados ao rural denunciam as mudanças institucionais, a redução e paralisação de políticas públicas, o agravamento dos conflitos no campo, a revisão e perdas de direitos estabelecidos e os riscos do agravamento da fome, da insegurança alimentar e nutricional e da pobreza (bastante reduzidos nos últimos anos) e reivindicam revisão no posicionamento do atual governo federal.
Creio que não há dúvidas sobre a importância e magnitude do momento que estamos vivenciando. Citamos apenas algumas das mudanças nas políticas de desenvolvimento rural para ilustrar o momento crítico de rompimento de uma trajetória fortalecida nos últimos 20 anos. Desde o ano passado tivemos:
a) minimização da agricultura familiar no cenário político e institucional nacional, com as extinções do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, Secretarias, Departamentos e outros órgãos vinculados à questão agrária;
b) mudanças nas políticas de reforma agrária e regularização fundiária, visando colocar novas áreas à disposição do mercado e da iniciativa privada, ao mesmo tempo em que minimizam a criação de assentamentos de reforma agrária e a atuação dos movimentos sociais;
c) perdas e ameaças a direitos presentes em marcos regulatórios importantes, como a legislação trabalhista, previdenciária, e de combate ao trabalho escravo contemporâneo;
d) redução expressiva em recursos de políticas públicas, a exemplo do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Programa Um Milhão de Cisternas, Programa de ATES (Assessoria Técnica, Social e Ambiental à Reforma Agrária) e Programa de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), Programa Bolsa Família, e Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR), sendo que tais reduções não são conjunturais, inserindo-se em uma perspectiva de longo prazo com a Emenda Constitucional nº 95 de dezembro de 2016, também conhecida como “PEC do teto dos gastos públicos”, ou simplesmente “PEC da morte”;
e) paralisação de políticas públicas, como as políticas territoriais e o Programa ATER Mais Gestão para cooperativas da agricultura familiar;
f) construção de um cenário favorável a pautas conservadoras, como a flexibilização nos normativos para fiscalização cadastral e controle de terras por estrangeiros, a aprovação de porte de armas no campo, as mudanças nos critérios para demarcação de terras indígenas, e a flexibilização em regulamentos ambientais.
Ademais, para além destas mudanças nas políticas para a agricultura familiar, poderíamos citar modificações em outras políticas que afetam a sociedade brasileira como um todo, impactando igualmente essa categoria social e o meio rural, como a redução nos investimentos em educação e em ciência e tecnologia, e a revisão de direitos e políticas para as mulheres.
Estes são alguns exemplos de mudanças nas políticas para a agricultura familiar a partir do avanço de uma perspectiva neoliberal na agenda pública. São “novas” ideias e interpretações sobre a agricultura familiar e o desenvolvimento rural, que se manifestam no rompimento de uma trajetória construída em torno do fortalecimento da categoria social nos últimos 20 anos. As mudanças sugerem que, na perspectiva do Estado, o desenvolvimento rural e territorial cede novamente lugar ao desenvolvimento agrícola, sendo este orientado exclusivamente pela produtividade agropecuária.
Estas modificações políticas e institucionais no cenário brasileiro demandam repensar as estratégias para o desenvolvimento rural. Estamos diante de um momento crítico que exige o protagonismo e a capacidade de atuação dos atores sociais, em pelos menos duas frentes.
A primeira delas, coerente com os repertórios de ação dos movimentos sociais, envolve reivindicar, contestar, protestar e propor políticas públicas de desenvolvimento rural e marcos regulatórios na construção de sistemas agroalimentares sustentáveis. O Estado foi fundamental na construção do desenvolvimento rural nos últimos 20 anonas duas últimas décadas. Neste período, o Estado foi, ainda que permeado por conflitos, parceiro das organizações da agricultura familiar na estruturação do desenvolvimento rural. Em muitas situações, as próprias organizações sociais também estruturaram-se, em cooperação conflituosa, com o Estado. Contestando perspectivas neoliberais, demanda-se (ainda que em um cenário adverso) a vigília dos movimentos sociais e da sociedade civil na reivindicação do papel do Estado no desenvolvimento. A construção de um sistema agroalimentar sustentável também passa pela atuação do Estado na construção de marcos regulatórios e políticas públicas estruturantes (reforma agrária, educação, saúde, estradas etc.) e sociais importantes.
Mas estas reivindicações também já não podem mais ser apenas voltadas à retomada ou reestruturação das políticas que tivemos nos últimos anos. O contexto mudou e algumas políticas públicas vinham enfrentando algumas limitações, seja em termos de dificuldade de romper com o produtivismo agrícola, seja em contemplar a diversidade da agricultura familiar, ou ainda eram pequenas em termos de orçamentos e público contemplado. Precisamos rever alguns formatos, potencializar aquelas políticas que contribuíam na construção de sistemas agroalimentares sustentáveis, e resgatar a capacidade criativa e propositiva que permeou as organizações sociais da agricultura familiar e suas assessorias nos anos 1990 e início dos anos 2000.
A segunda frente implica em construir alianças e estratégias de desenvolvimento rural com demais atores da sociedade brasileira, sendo um deles os consumidores. A estruturação e o fortalecimento da agricultura familiar também pode vir do aumento da demanda de alimentos, bens e serviços por consumidores e do estreitamento das relações sociais com este público. Mas não estamos falando da agricultura familiar fornecer qualquer produtor ou reproduzir relações econômicas que permeiam grandes mercados. Cresce na sociedade a demanda por alimentos saudáveis, a valorização da origem e a preocupação com mudanças climáticas. A aliança com os consumidores passa, então, pela oferta de produtos que justamente valorizem características da agricultura familiar, ou seja, os saberes e os sabores locais, a diversidade produtiva, a artesanalidade, a produção agroecológica etc.
Avançamos nesta articulação com os consumidores e nesta perspectiva a partir da experiência das compras públicas da agricultura familiar, com o crescimento das feiras e de estratégias de agroindustrialização ou de comercialização que fortaleceram os circuitos curtos. Entidades socioassistenciais, consumidores urbanos em situação de vulnerabilidade social, escolares, professores, universitários, nutricionistas e gestores públicos são alguns atores que passaram a conhecer o “gosto” e a qualidade alimentar oriunda da comida da agricultura familiar e, como indicam algumas pesquisas, passaram a valorizar os produtos e a categoria social.
Contudo, ainda precisamos fortalecer a inserção da agricultura familiar na sociedade brasileira. Esta inserção é importante para a reação da agricultura familiar em um contexto de avanço do neoliberalismo. Contudo, ela também é importante para, quando estruturada uma nova trajetória de fortalecimento das políticas para a agricultura familiar, a mesma encontrar amparo e suporte igualmente nos atores sociais urbanos (para além dos atores tradicionalmente vinculados ao rural brasileiro, como ilustrado no início deste texto). Estas alianças auxiliarão a dar maior perenidade e estabilidade política e institucional às políticas públicas para a agricultura familiar e à construção de sistemas agroalimentares sustentáveis.
https://www.sul21.com.br/jornal/o-desenvolvimento-rural-brasileiro-em-tempos-de-crise/
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