A comercialização representa um grande entrave ao desenvolvimento da agricultura familiar

Haloysio Miquel de Siqueira, professor de Sociologia Rural e Extensão Rural, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), exemplifica como a academia pode propor ferramentas para auxiliar o produtor familiar
(Foto: Shutterstock)
A agricultura familiar é responsável por 70% da produção de alimentos no Brasil. No entanto, os produtores familiares ainda enfrentam diversos desafios, principalmente quanto à comercialização. Em entrevista ao Prêmio Jovem Cientista, o professor Haloysio Miquel de Siqueira, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), mostra que é possível reverter este quadro e apresenta um projeto universitário de apoio à comercialização solidária que favorece o desenvolvimento e a organização da agricultura familiar.
Por que os produtores familiares enfrentam tantas dificuldades?
Haloysio Miquel de Siqueira – Historicamente, a comercialização representa um grande entrave ao desenvolvimento da agricultura familiar. Um dos motivos é a dependência de terceiros que, quando atuam em pequeno número na intermediação dos produtos, podem impor preços de compra desfavoráveis aos agricultores. Felizmente, é possível reconhecer avanços nesse cenário, como a conquista de incentivos à agricultura familiar nas políticas públicas e os esforços direcionados à comercialização justa e solidária. Essa forma de comercialização busca seguir os princípios da transparência, do pagamento de preço justo, da corresponsabilidade, da relação de longo prazo, do respeito ao meio ambiente e à dignidade do trabalho. A partir desses princípios, venho desenvolvendo, com alguns alunos da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), um projeto que apoia melhorias na comercialização de alimentos de agricultores familiares do município de Alegre (ES). Eles vendem seus produtos na feira municipal e nos mercados institucionais, estes últimos fomentados pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Nossos parceiros no projeto são o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alegre e o Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural – Incaper.
E como funcionam esses programas?
Siqueira – PAA e Pnae fazem parte da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e são implementados em Alegre desde 2007 e 2010, respectivamente. O Programa de Aquisição de Alimentos tem duas funções: a garantia de comercialização da produção familiar e a segurança alimentar de grupos em situação de risco. Também é importante por fortalecer as organizações sociais de agricultores familiares e por dar incentivo à produção agroecológica e orgânica de alimentos. Em Alegre, o PAA é praticado por uma modalidade conhecida como "compra com doação simultânea". Os alimentos são adquiridos de agricultores familiares, engajados em organizações fornecedoras, e doados para unidades assistenciais, como o hospital público e os abrigos de crianças desamparadas. No caso do Programa Nacional de Alimentação Escolar, o objetivo central é o atendimento da merenda da educação básica. Dos recursos financeiros repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para esse fim, no mínimo 30% devem ser destinados à aquisição de produtos da agricultura familiar, de empreendedor familiar rural ou de suas associações. Também existe a prioridade de aquisição de produtos orgânicos ou agroecológicos, devendo ser respeitada a exigência da certificação. Em Alegre, a feira municipal do produtor rural é destaque como local de venda direta de produtos oriundos da agricultura familiar e é um importante espaço de integração social, onde se dão o estreitamento das relações entre produtores e consumidores e a troca de conhecimentos entre os agricultores. Porém, o local designado para a feira ainda requer melhorias de infraestrutura, como cercamento e cobertura, mais ampla organização social dos feirantes, assim como mais qualidade e diversidade dos produtos ofertados.
Sobre o projeto desenvolvido na Universidade Federal do Espírito Santo, qual a proposta?
Siqueira – A metodologia utilizada pelo projeto se baseia no princípio da gestão compartilhada da comercialização solidária. Por meio dela, as associações dos agricultores familiares assumem o seu papel de principais agentes no acesso aos mercados, com base na iniciativa e no esforço conjunto dos próprios associados. No caso das feiras municipais e dos mercados institucionais, a gestão deve ser compartilhada com o poder público. Também podem buscar o apoio de entidades parceiras. Porém, é preciso sempre preservar a autonomia dos agricultores familiares. Essa metodologia engloba ações de planejamento e avaliação, capacitação e assessoria/apoio à gestão da comercialização. Além disso, as linhas de ação do projeto não se apresentam apenas como alternativa de geração de renda, mas também como mecanismos de inclusão social da agricultura familiar.
E como foi a implementação deste projeto?
Siqueira – A primeira fase de capacitação envolveu três seminários, com os temas: economia solidária; soberania e segurança alimentar e nutricional; e gestão da comercialização. Este último foi marcante, pois possibilitou uma rica discussão sobre a importância e as possibilidades da gestão compartilhada nos mercados institucionais. Após a capacitação, a questão da comercialização solidária passou a fazer parte da pauta das reuniões mensais da Rede da Agricultura Familiar de Alegre, das quais participam representantes de várias associações rurais e do Sindicato. Esses diálogos foram decisivos para que o Sindicato dos Trabalhadores Rurais assumisse a liderança da gestão compartilhada. Aliás, esta foi a maior conquista do projeto. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alegre assumiu, como legítimo representante dos agricultores familiares, o protagonismo no processo de comercialização solidária de alimentos, passando a fazer a elaboração e a tramitação das propostas de comercialização no PAA e no PNAE, bem como a negociação dos termos das Chamadas Públicas/PNAE com a Secretaria Municipal de Educação.
Quais foram os resultados do projeto?
Siqueira – Acredito que o nosso projeto tenha colaborado com o incremento no valor de aquisição da agricultura familiar, para atender ao Pnae, passando de 30,5% do valor repassado pelo FNDE, em 2013, para 105,7% (usando recursos próprios) em 2014 (com base no que consta nas Chamadas Públicas). Quanto à variedade, passou-se de 22 para 31 (40% mais) tipos de alimentos adquiridos no mesmo período. O número de agricultores participantes em Alegre também foi ampliado, passando de 14 para 33 (2,4 vezes mais) entre 2013 e 2014. O projeto tem contribuído ainda para mobilizar os agricultores familiares a participar dos mercados solidários praticados em Alegre, proporcionando maior inserção social e estabilidade às famílias, o que pode ser positivo para a permanência no campo com a garantia de qualidade de vida. Há também a expectativa de aprimoramento da feira, principalmente quanto à organização e infraestrutura, e existe um enorme potencial de inserção de mais agricultores e alimentos nos programas institucionais. Iniciativas que garantam ao agricultor familiar melhores condições de trabalho e vida são de extrema relevância para a segurança alimentar de uma nação. Entretanto, há um certo desânimo quanto ao PAA, devido às dificuldades relacionadas aos trâmites burocráticos, às exigências quanto a origem da matéria-prima (70% de produção da agricultura familiar) para alimentos processados e aos preços praticados (mercado atacadista como base).
http://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/03/comercializacao-representa-um-grande-entrave-ao-desenvolvimento-da-bagricultura-familiarb.html

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