A gastronomia sustentável de Paraty: negociações em torno da qualidade ligada ao território (The sustainable gastronomy of Paraty: negotiations on quality linked to the territory)

por Gilberto Mascarenhas1

1 Pesquisador e membro da Rede Brasileira de Sistemas Agroalimentares Localizados (SIAL) e do Núcleo de Pesquisas Mercados, Redes e Valores do CPDA/UFRRJ - E-mail: gilberto.mascarenhas1@gmail.com

A globalização do sistema agroalimentar estimulou um processo de homogeneização de produtos e padrões. Entretanto, essa tendência tem sido crescentemente desafiada por um consumidor pós-moderno que valoriza uma gastronomia construída a partir de um saber-fazer específico e que utiliza ingredientes e produtos locais. Essa gastronomia é também buscada por um turista que além de consumidor se torna um "consum(ator)", interessado em aspectos ligados à saudabilidade do alimento e à sustentabilidade dos ativos tangíveis e intangíveis que conformam os processos de produção ligados a um território. Tal proposta gastronômica envolve a construção de acordos intersubjetivos e formais entre diversos mundos ou convenções, como o doméstico (agricultores familiares), industrial (restaurantes), reputação (chefs) e cívico (poder público, organizações civis), em torno de uma "promessa de diferença" e de qualificação do alimento.

Diversas experiências voltadas para uma “gastronomia sustentável” têm sido implementadas ao redor do mundo, principalmente direcionadas para a valorização de produtos locais e a salvaguarda de um patrimônio alimentar. No âmbito da sociedade civil, o movimento slow food constitui um dos principais exemplos. No caso do Brasil, o Instituto do Patrimônio Histórico e Natural, destaca-se pela proteção do patrimônio e tradições alimentares brasileiras. Em nível mundial, as indicações geográficas buscam valorizar e proteger produtos agroalimentares e bebidas que se distingam por reputação ou condições específicas de produção, à exemplo da Cachaça de Paraty, entre outros. Nessa direção, as iniciativas da Unesco como a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Nacional, de 1975, a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, de 2003 e, mais recentemente, a Rede de Cidades Criativas da Unesco, de 2004, referendam a gastronomia no âmbito de um ativo local, patrimonializável e agregador de valor. No caso das Cidades Criativas da Unesco, a gastronomia constitui um dos sete eixos que induzem ou estimulam o desenvolvimento de regiões, a partir das cidades. O Brasil conta com diversos títulos de cidade criativa da Unesco, sendo que na área de gastronomia foram reconhecidas Florianópolis, Belém e, mais recentemente, Paraty, em novembro de 2017. O reconhecimento de Paraty decorreu da constatação da existência de uma gastronomia local que se caracteriza por uma identidade multiétnica, envolvendo as cozinhas caiçaras, indígena e quilombola.

Em Paraty, iniciativas locais têm incluído a gastronomia, tanto na perspectiva de resgatar e valorizar seu patrimônio e história, como também de constituir um complemento importante na atratividade do turismo local. Dentre elas estão as festas religiosas (Divino), festivais e eventos culturais como o Festival Bourbon de Jazz e Blues, a Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP) e iniciativas gastronômicas, como o Polo Gastronômico, a Festa da Cachaça, a Folia Gastronômica, a Festa do Camarão, a Escola de Comer e o movimento da Gastronomia Sustentável de Paraty. No âmbito dessas iniciativas, o movimento da Gastronomia Sustentável (GS) constitui um exemplo das novas tendências de valorização do território aqui discutidas. O projeto da Gastronomia Sustentável de Paraty (GS), uma iniciativa da Agenda 21 local com a participação de produtores, restaurantes, técnicos e instituições, busca integrar a produção de agricultores e pescadores locais a restaurantes e à população local, valorizando a produção agroecológica e a produção familiar e reforçando atividades voltadas para o desenvolvimento da agricultura e do turismo sustentáveis na região. O projeto busca articular um canal de comercialização direta entre produtores rurais e pescadores com o circuito gastronômico de Paraty (Folha do Litoral, 2010). A GS teve como base iniciativas locais como projetos de agroecoturismo, o Plano de Governo das Comunidades Tradicionais e como referência, as exigências da Agenda 21 referentes aos princípios do turismo sustentável propostos pela Organização Mundial do Turismo. Em 27 de maio de 2011, a Câmara Municipal de Paraty aprovou a Lei da Gastronomia Sustentável de Paraty, tendo como referência uma série de princípios e critérios.

O objetivo desta pesquisa foi analisar o movimento da Gastronomia Sustentável de Paraty, partindo do pressuposto de que a construção da qualidade envolve a negociação de plataformas coletivas e a construção de acordos entre os atores dos diferentes mundos. A pesquisa foi realizada em dois momentos: entre 2010 e 2012, envolvendo participação do autor nos processos de mediação e a partir de observação estruturada e, em maio de 2018, com visitas a campo, entrevistas com atores chaves (produtores, chefs, instituições de apoio locais), realizando-se posteriormente uma análise de conteúdo sobre documentos e entrevistas e um evento de restituição com debate dos resultados com os atores envolvidos na pesquisa durante o evento da OffFlip. Neste trabalho, selecionamos para análise, um dos itens da proposta do movimento da GS que é referente às relações entre produtores e restaurantes. Embora os demais itens sejam também relevantes, essa escolha analítica se deveu ao nosso interesse referente aos meios de reprodução da agricultura familiar, num contexto econômico onde essa atividade tem sido enfraquecida e esvaziada e caracterizada por um movimento de migração rural-urbana. Isso é particularmente relevante em situações como a de Paraty, onde a força do turismo como principal atividade econômica poderia obscurecer e enfraquecer o importante papel da agricultura familiar, seja no contexto de sua própria viabilidade e reprodução, como na perspectiva de segurança alimentar local.

Verificou-se que, embora a Gastronomia Sustentável não tenha se tornado uma plataforma coletiva unanimemente adotada pelos atores dos diferentes mundos, suas principais bandeiras como a valorização de produtos locais, destinação ambientalmente correta do óleo de cozinha e resgate de uma cozinha típica, foram absorvidas em distintos níveis ou estimularam movimentos ou iniciativas convergentes. Dentre as razões levantadas para que o movimento da GS ainda não tenha alcançado integralmente seus objetivos, estão: a) descontinuidade dos apoios do setor público do município em relação à proposta; b) a saída da de atores importantes da arena de mediação e animação do processo como o Sebrae e o Ministério da Agricultura; e c) a ocorrência de uma série de assimetrias e de falta de comunicação entre produtores e restaurantes. Essas assimetrias envolvem, do lado dos produtores, a necessidade de atender a uma série de requisitos em relação aos produtos ofertados, referentes à qualidade, documentação e flutuação e dispersão da oferta, entre outros. No lado dos restaurantes, destacam-se, entre outros elementos, a necessidade de criação de canais de comunicação mais efetivos com os produtores, a inexistência de contratos e as indefinições sobre preços e prazos de pagamento.

Com o recente reconhecimento de Paraty como Cidade Criativa da Unesco para a Gastronomia, abre-se uma oportunidade para que o movimento da GS e outras iniciativas locais convergentes como o turismo e agricultura sustentável possam se congregar em torno de uma plataforma coletiva voltada para uma proposta de gastronomia local de base sustentável e amplamente partilhada. Tais iniciativas se configuram importantes não apenas para Paraty, mas para outras regiões e países por constituírem um rico laboratório de desenvolvimento local que pode ser testado e adaptado em outras regiões e países.

(O texto integral desta pesquisa pode ser acessado no link agriculturaurbana.org.br/sial/

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